Por Maurício Rands*
A regulamentação dos provedores de internet ainda não
avançou na legislação. Nem por isso o sistema constitucional brasileiro deixa
de contar com instrumentos para conciliar a liberdade de expressão com a
responsabilização desses provedores. O STF acaba de definir a interpretação
constitucional do Marco Civil da Internet, a Lei 12.965/2014. Depois de muito debate
interno, os ministros da Corte chegaram a uma deliberação nos julgamentos dos
recursos extraordinários 1.037.396, relatado por Dias Toffoli, e 1.057.258,
relatado por Luiz Fux. Ambos foram elevados a Temas de Repercussão Geral sob os
números 533 e 987.
Na conclusão do julgamento, em 26/06/2025, o STF declarou
parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet. Por
maioria de votos (8×3), prevaleceu o entendimento de que essa norma não é mais
suficiente para proteger direitos fundamentais e a democracia, devendo-se
interpretá-la de modo a exigir maior dever de cuidado por parte das plataformas
digitais, podendo responsabilizá-las em alguns casos até sem prévia medida
judicial. Nos casos de crimes contra a honra, manteve-se a aplicação literal do
art. 19, segundo a qual as plataformas só podem ser responsabilizadas se
descumprirem ordem judicial para remoção de conteúdo.
Em outras hipóteses, o tribunal considerou que os
provedores podem ser responsabilizados civilmente se não retirarem conteúdos
que configurem crimes graves — como tentativa de golpe de Estado, abolição do
Estado democrático de Direito, terrorismo, instigação ao suicídio ou à
mutilação, racismo, homofobia, ou crimes contra mulheres e crianças. Para
permitir essa responsabilização antes de decisão judicial, a Corte incluiu o
requisito da “falha sistêmica”, isto é, a omissão do provedor em adotar medidas
adequadas de prevenção ou remoção dos conteúdos ilícitos, violando o dever de
atuar com responsabilidade, transparência e cautela.
Nos crimes de menor gravidade, a Corte determinou que os
provedores serão responsabilizados pelos danos decorrentes de conteúdos gerados
se, após receberem um pedido de retirada, deixarem de remover o conteúdo,
inclusive no caso de contas denunciadas como falsas. A decisão definiu ainda
deveres de autorregulação: os provedores devem criar sistemas de notificações,
garantir devido processo e elaborar relatórios anuais de transparência sobre
notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamentos, além de
disponibilizar canais permanentes e específicos de atendimento, acessíveis e
amplamente divulgados.
A decisão gerou polêmica. Muitos acusam o STF de invadir
competência do Poder Legislativo, esquecendo que, no regime moderno de
separação de poderes, atos de um poder podem atingir atribuições de outro,
desde que em julgamentos provocados por partes legítimas. No RE 1.037.396, a
Facebook Serviços Online do Brasil Ltda. recorreu de decisão do TJ-SP que
determinou a exclusão de um perfil falso e o pagamento de indenização por danos
morais — decisão mantida pelo STF. No RE 1.057.258, a Corte reverteu condenação
da Google Brasil Internet S.A. por não excluir, no extinto Orkut, uma
comunidade ofensiva.
Os críticos também ignoram que não há direitos fundamentais
absolutos. A liberdade de expressão é garantida pelo art. 5º, incisos IV e IX,
e pelo art. 220 da Constituição, mas gozam de igual hierarquia outros direitos,
como intimidade, imagem e honra (inciso X); acesso à informação (XIV);
propriedade (XXII); direito autoral (XXVII); direitos do consumidor (XXXII); e
proteção contra o racismo (XLII). O Estado não pode permanecer inerte diante da
violação desses direitos na internet sob a alegação de liberdade de expressão.
Esses conflitos devem ser resolvidos pelos princípios constitucionais — em
especial a interpretação conforme a Constituição, a proporcionalidade e a
unidade da Constituição.
Foi isso que o STF fez no julgamento dos Temas 533 e 987,
ao harmonizar direitos fundamentais potencialmente em conflito e conferir
interpretação equilibrada e ponderada ao Marco Civil da Internet, ao menos até
que o Congresso Nacional retome a deliberação do PL 2.630/2020 ou outra
proposta sucessora.
*Advogado formado pela FDR/UFPE, professor de Direito Constitucional da Unicap, PhD pela Universidade de Oxford.
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